Muitos casais, mesmo católicos, estão dispostos a
fazer grandes sacrifícios para obter uma casa ou um carro, pelo simples fatos
dessas coisas serem bens. Não querem, contudo, encarar o alegre sacrifício
que supõe ter filhos, Parece não entender que a fecundidade é o maior bem que
uma família pode ter!
Cormac Burke
” Infelizmente,
dedico boa parte do meu tempo a processos de anulação de casamentos. Um dos
motivos mais freqüentes de nulidade é o de que o consentimento estava viciado
pela exclusão de um dos três tradicionais bens do casamento: o bonum
fidei (fidelidade a um só cônjuge, a exclusividade da união
matrimonial), o bonum sacramenti (a permanência do
vínculo matrimonial, a indissolubilidade da união) ou o bonum
prolis (a prole, a fecundidade da união).
Cada um destes
valores traz consigo um aspecto de obrigação. É lógico e
conveniente, portanto, que nós, os juízes eclesiásticos, concentremos a atenção
nesta alternativa: a pessoa que se casou aderiu realmente a essa obrigação
ou não? Por outro lado, porém, não acho tão saudável que as pessoas em
geral considerem estes apenas como obrigações… Pensando assim, facilmente
acabariam por concluir que, na medida em que se trata de obrigações – com todo
o peso que qualquer obrigação implica, e dada a nossa tendência para evitar
qualquer peso -, a exclusão da fidelidade, da indissolubilidade ou da prole não
deve ser algo estranho ou inusitado. Pelo contrário, pensarão até que há boas
razões para considerar esse fenômeno como algo normal e previsível…
É evidente que não
me refiro a meras considerações teóricas. Receio que inúmeros cristãos – sem
falar dos que têm uma especial missão de formar e guiar os outros, professores
e conselheiros – deixem de surpreender-se com a idéia de que as pessoas excluam
um ou outro destes bens no momento em que se casam. Pode
parecer-lhes até bastante natural.
A EXCLUSÃO NÃO É
NATURAL…
Contudo, a
exclusão desses valores é surpreendente, justamente porque não
é natural. E não é natural porque ninguém rejeita obrigações ou
responsabilidades que acompanham necessariamente a aquisição de uma coisa boa.
Se uma coisa é muito boa, a bondade que proporciona supera de longe todo o
peso das responsabilidades. A compra de um automóvel
também supõe uma série de obrigações e responsabilidades; mesmo assim,
quase todas as pessoas consideram o automóvel uma coisa boa e pensam que,
apesar das desagradáveis obrigações que contraem, vale a pena comprarem um carro,
ou até dois ou três, se puderem pagá-los 1.
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(1) Conheço uma
família africana com dezoito filhos e sem automóvel, e uma “família” americana
(entre aspas, porque não sei se merece esse nome) com dezoito automóveis e sem
nenhum filho. Honestamente, penso que a família africana é muito mais feliz:
pelo menos dezoito vezes mais.
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Foi Santo
Agostinho quem teve a feliz idéia de nos descrever os elementos essenciais do
casamento como bona: como coisas boas. E é o Papa João
Paulo II quem, na Familiaris consortio, nos fala da
indissolubilidade como de uma alegre realidade que os cristãos devem anunciar a
todo o mundo. “É necessário – diz – reafirmar a boa nova da
natureza definitiva do amor conjugal” 2.
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(2) Familiaris
consortio, n. 20.
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A fidelidade e os
filhos são coisas boas. A indissolubilidade é uma boa notícia!
Tanto o Bispo de
Hipona como o Romano Pontífice fazem afirmações que nos estimulam a pensar, a
seguir uma linha de raciocínio que nos conduza a descobertas e redescobertas.
No meu modo de ver, é vital para o futuro do casamento e da família que
redescubramos algo de elementar que está escondido nessa doutrina, algo que
deveria ser bastante óbvio para todos, mas que vem sendo demasiado obscurecido:
o simples fato de que cada um dos bens matrimoniais é exatamente uma
coisa boa. Cada um desses bens é bom porque contribui
poderosamente não só para o bem da sociedade, mas também para o bem
dos cônjuges, para o seu desenvolvimento e amadurecimento como pessoas que
devem crescer em dignidade, em caráter e em generosidade: que devem aprender a
amar. (Afinal de contas, este é o bem definitivo que todos temos de
adquirir e desenvolver neste mundo: a capacidade de amar).
É NATURAL DESEJAR
UM VÍNCULO PERMANENTE E EXCLUSIVO
Só na medida em
que as pessoas recuperarem este modo de pensar compreenderão corretamente que
coisas boas, são também desejáveis. E, por isso, é natural
desejá-los. É natural, porque corresponde à natureza do amor humano.
Todo o homem
encontra qualquer coisa de profundamente bom na idéia de um amor:
a) do qual ele é o
objeto único e privilegiado;
b) que será seu
enquanto durar a sua vida;
c) através do
qual, tornando-se um co-criador, poderá perpetuar-se a si próprio (e até mais
do que a si próprio, como veremos mais adiante). A bondade que o homem vê
nos bens do casamento faz que lhe seja natural não só não temê-los
nem excluí-los, mas até procurá-los e acolhê-los.
É natural,
portanto, desejar uma união matrimonial fecunda, permanente e exclusiva. É antinatural excluir
qualquer desses três elementos. Temos de recuperar a perspectiva correta para
que essas realidades nos atinjam com todo o seu peso – e, através de nós,
possam tornar-se evidentes para os outros.
Em primeiro
lugar, é óbvio que a fidelidade e a exclusividade são algo bom: “Você
é insubstituível para mim”. Temos aí a primeira afirmação
verdadeiramente personalizada do amor conjugal, que aliás constitui um eco das
palavras de Deus dirigidas a cada um de nós, no livro de Isaías: Meu es
tu, tu és meu (Is 43, 1).
A
indissolubilidade também é algo evidentemente bom, como é bom ter uma casa, um
abrigo estável; conforta saber que se pertence a alguém, e que esse alguém nos
pertence, e que se trata de algo definitivo. As pessoas desejam esta situação,
foram feitas para ela, compreendem que deverão sacrificar-se para obtê-la, e
sentem que esse sacrifício vale a pena. “É natural para o coração humano
aceitar exigências, mesmo que sejam árduas, por amor a um ideal, e, acima de
tudo, por amor a uma pessoa” 3. Algo de muito estranho se passa
no coração e na cabeça de alguém que rejeita a permanência da relação conjugal.
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(3) João Paulo
II, Audiência Geral, 28 de abril de 1982.
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De qualquer modo,
não me estenderei mais a respeito destes dois aspectos, pois quero concentrar a
atenção no bem que supõe ter filhos.
QUANDO ALGUÉM SE
PRIVA DE UM BEM
A mentalidade
contraceptiva – dolorosamente diagnosticada pela Encíclica Humanae
vitae, em cujas páginas se encontram os remédios apropriados – é uma doença
que pode vir a ser fatal para a sociedade ocidental. O ponto essencial da
questão não são os debates ou discórdias sobre a moralidade de
determinadas técnicas de planejamento familiar; na verdade, isso
não passa de um aspecto do quadro patológico global. A verdadeira doença é
que quase toda a sociedade ocidental passou a encarar a limitação do número de
filhos como uma coisa boa e não é capaz de entender que é a privação
de uma coisa boa.
Não me refiro, é
claro, àqueles casais que, por razões de saúde, econômicas, etc., realmente
precisam recorrer a uma planejamento familiar natural (e o fazem com tristeza).
Penso em outros, em muitos outros, que teriam condições de manter uma
família mais numerosa, e voluntariamente se recusam a fazê-lo, aparentemente
sem perceber que se estão privando de um bem.
Preferem ter menos bona matrimonialia e mais bens materiais. E a
qualidade da sua vida – cada vez mais materializada e menos humana –
decorre inevitavelmente dessa escolha. Os bens materiais não podem manter
um casal unido. Os bens matrimoniais, e em especial o bem de ter
filhos, podem.
Com efeito, há
algo de profundamente bom nesse aspecto específico da união sexual entre marido
e mulher, no qual reside a sua autêntica exclusividade: esse compartilhar não
tanto o que pode ser um prazer sem igual, mas é com certeza
um poder sem igual, um poder que nasce da complementaridade sexual
e traz ao mundo uma nova vida. O homem e a mulher anseiam profundamente
por esta verdadeira união sexual e conjugal, e o seu anseio está fortemente
arraigado na natureza humana.
AUTO-AFIRMAÇÃO?
AUTOPERPETUAÇÃO?
As relações
sexuais entre os cônjuges que lançam mão de anticoncepcionais podem tornar-se
um mero exercício de auto-afirmação em que cada um dos dois só se busca a si
mesmo e não consegue voltar-se para o outro, conhecê-lo e entregar-se a ele. Pelo contrário, uma autêntica
intimidade sexual entre os cônjuges, aberta à vida, é por natureza afirmativa: afirma
o amor conjugal e a doação recíproca na mesma medida em que afirma a
singularidade e a grandeza do poder sexual que marido e mulher compartilham.
O desejo de
perpetuar-se é algo natural. Em si mesmo, já contém um valor personalista
profundo. E se o homem moderno tem dificuldade em compreendê-lo ou senti-lo,
isso é um sinal claro do nível de desvitalização, desnaturalização e
despersonalização em que se encontra. De qualquer forma, na união conjugal,
o anseio sexual procriador ultrapassa o desejo natural de a pessoa se
perpetuar a si mesma. No contexto do amor conjugal, este anseio
natural de autoperpetuação adquire um novo alcance e significado. Não se trata
de dois “eus” desconexos, cada um deles preocupado apenas com a sua própria
perpetuação, talvez de um modo egoísta. Mais do que isso, trata-se de duas
pessoas que se amam e que naturalmente querem perpetuar o amor que
os atrai um para o outro, a fim de que possam ter a alegria de vê-lo tomar
carne num novo ser humano, fruto do mútuo conhecimento carnal e espiritual pelo
qual os dois expressam o seu amor (cf. Gên 4, 1).
Duas pessoas
apaixonadas querem realizar juntas uma série de coisas: querem projetar,
construir ou montar algo que seja indiscutivelmente deles, como
fruto da decisão e da ação dos dois. Nada, repetimos, pertence mais
a um casal do que o filho que geram.
A sociedade,
através dos monumentos que constrói, evoca os grandes eventos do seu passado a
fim de manter vivos, no presente e no futuro, os valores que a sustentam. O
amor conjugal também precisa de tais monumentos. Quando o clima romântico
começa a desfazer-se, e os cônjuges sentem a tentação de pensar que o amor
entre eles se extinguiu, então cada filho se ergue como um testemunho vivo da
profundidade, da singularidade e da totalidade da entrega conjugal mútua que
fizeram um ao outro no passado – quando tudo era fácil -, e como um apelo
urgente para que continuem a entregar-se agora, por mais duro que possa
parecer.
AUSÊNCIAS
PROGRAMADAS
No meu trabalho na
Rota Romana, deparo freqüentemente com pedidos de anulação de casamentos –
perfeitamente válidos – de casais jovens que se uniram legitimamente e por
amor, mas cuja união desabou porque os dois, deliberadamente, adiaram a vinda
dos filhos, privando o seu amor conjugal da sustentação que lhe é natural.
Se duas pessoas se limitam a olhar extaticamente
uma para a outra, os defeitos que pouco a pouco irão descobrindo podem acabar
por parecer-lhes insuportáveis.
Se marido e mulher
aprendem a estar atentos aos seus filhos, continuarão a descobrir os defeitos
um do outro, mas já não terão tempo nem motivos para os considerarem
insuportáveis. E para que coisas olharão juntos, se não tiverem nada para
olhar? Uma série de ausências programadas vem transformando a
vida conjugal de inúmeros casais de hoje numa realidade oca, num vácuo que cedo
ou tarde acabará por desabar. O amor entre os cônjuges encolhe-se e
desaparece se os dois permanecem demasiado tempo com os olhos fixos um
no outro; para que cresça, tem de contemplar outros olhos – muitos outros
olhos, nascidos desse mesmo amor -, e ser por eles contemplado 4.
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(4) O amor de
casais naturalmente infecundos, aos quais Deus não deu filhos, também deve
crescer numa necessária dedicação aos outros.
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O amor conjugal
necessita, portanto, do apoio que os filhos representam 5.
Os filhos reforçam a bondade do vínculo matrimonial, permitindo-lhe
resistir às tensões que inevitavelmente se seguem ao enfraquecimento ou à
desaparição do amor romântico, espontâneo. O vínculo matrimonial –
que não se pode romper sem desobedecer a Deus – não é constituído somente pelo
amor e sentimentos – normalmente instáveis – que existem entre marido e mulher;
deve ser constituído, mais e mais, pelos filhos. E cada filho é um dos elos com
que se forja essa corrente, é um dos fios com que se entretece essa corda.
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(5) Quer seja um
só filho, quer sejam dois, ou talvez cinco ou seis. Somente Deus sabe quantos
filhos constituirão o apoio que cada casal requer. Por esta razão, se os
cônjuges querem tomar decisões acertadas num assunto tão vital para a sua
felicidade, devem fazê-lo com profundo espírito de oração.
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Na sua homilia em
Washington, D.C., em outubro de 1979, o Papa João Paulo II lembrava aos pais
que “é sem dúvida menos grave negar aos filhos determinadas vantagens
materiais e comodidades do que privá-los da presença de irmãos, que poderiam
ajudá-los a crescer em humanidade e a compreender a beleza da vida em todas as
suas idades e em toda a sua variedade” 6.
Eu sugeriria aos
pais demasiado propensos a limitar o número de filhos que lessem esta
advertência do Papa à luz do ensinamento do Vaticano II: “Os filhos são o
dom supremo do matrimônio e constituem um benefício máximo
para o bem dos próprios pais” 7. Ou seja, esses
pais não estão privando somente os filhos que já têm, mas a si próprios,
de um bem único, de uma experiência insubstituível na vida humana.
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(6) Homilia de 7
de outubro de 1979.
(7) On the scope
and nature of University education, Discourse IV.
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APRENDER A OPTAR
É freqüente
encontrar afirmações como esta: “As pessoas aceitam mais facilmente a idéia
da limitação ou do planejamento familiar quando possuem um nível de cultura e
educação mais elevado”. Concordemos ou não, admitir uma afirmação destas
sem questioná-la é aceitar uma determinada filosofia de vida. Com efeito, só as
pessoas que tenham recebido um tipo de educação muito peculiar,
completamente
impregnada de valores – ou antivalores – muito estranhos, é que conseguirão
aceitar com facilidade a idéia da limitação familiar. Semelhante educação pode
ser considerada educação cristã, ou mesmo simples educação? Vale a pena lembrar
o juízo que o cardeal Newman fez da educação do seu tempo, em meados do século
XIX. “O homem moderno”, dizia, “é instruído, mas não educado. Aprendeu a
fazer coisas, e a pensar o suficiente para fazê-las, mas não aprende a pensar
para além disso”…
Toda a questão,
nesta matéria, gira em torno de valores e opções, de alternativas e bens.
Poucas pessoas
podem ter todos os bens deste mundo. Mas há muitas que têm uma certa liberdade
de escolha: posso escolher entre um bem A e um bem B,
mas talvez não os dois simultaneamente. Terei de optar entre um e outro. A
opção inteligente e autenticamente humana escolherá o bem melhor,
sabendo que assim se enriquece: é a escolha educada. A opção pouco inteligente
e pouco humana escolherá o bem inferior, e é provável que ignore quanto se
engana e se empobrece ao fazê-lo.
Há algum tempo, no
Quênia, um africano fez-me o seguinte comentário ao saber que o índice médio de
fecundidade no Ocidente gira em torno de 1,2 filhos por casal: “Os casais
do Ocidente devem ser muito pobres se não têm condições econômicas
para criar mais de dois filhos…” Não era propriamente um especialista
qualificado no assunto, mas as suas palavras podem fazer-nos pensar.
Acrescentemos mais uma pitada desta sabedoria “não-tecnocrática”, desta vez
colhida no próprio Ocidente.
Conheci um jovem
casal inglês, há alguns anos. Um casal normal que queria ter filhos. Nasceu o
primeiro, e depois, sem que o quisessem, passaram-se três ou quatro anos sem
que viessem outros. Por fim, a mãe engravidou pela segunda vez. O primeiro
filho entusiasmou-se tanto quanto os pais. Infelizmente, ocorreu um aborto
espontâneo. O pai teve que contar à criança que não ganharia o irmãozinho ou irmãzinha
que esperava. “Olha, a mamãe não vai ter esse bebê”. Depois, aceitando os
imperscrutáveis caminhos de Deus, acrescentou: “Foi melhor assim…” O menino,
porém, não se rendeu tão facilmente: “Mas, papai, o que pode ser melhor
do que um bebê?”…
A ESCALA DE
VALORES
O menino do nosso
episódio possuía uma verdadeira escala de valores, o que, segundo
a Humanae vitae, é exatamente a primeira coisa de que um casal
precisa para encarar honestamente a regulação da natalidade 8. Um
casal que não considere a vinda de um filho como a maior e mais
enriquecedora aquisição que pode fazer manifesta não possuir uma
escala de valores verdadeira.
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(8) Cf. Humanae
vitae, n. 21.
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Muitos casais do
Ocidente parecem não compreender a verdade tão simples de que os filhos são o
fruto mais personalizado do seu amor conjugal, e que são, por conseguinte, não
só o maior dom que podem oferecer um ao outro, como também um presente de Deus
para os dois.
“Mas… se tivermos
mais um filho, os que já temos e nós mesmos ficaremos numa situação financeira
mais difícil…” Não me venham
dizer que pensam realmente que o novo filho passará mal, a não ser que queiram
pertencer ao grupo daqueles que se perguntam constantemente se a própria vida vale
a pena, ou se a não-existência não será afinal de contas preferível à
existência.
“Mas os nossos
outros filhos, os que já temos, vão ficar numa situação pior…” Ficarão mesmo? O
Papa afirma que, em termos verdadeiramente humanos, ficarão em situação melhor.
“Mas nós mesmos
enfrentaremos uma situação pior. Passaremos por maiores dificuldades…” É
bem verdade que vocês terão de trabalhar mais; aliás, hoje em dia muita gente
trabalha mais do que as horas devidas para ter “bens” materiais. Por acaso isso
os torna menos felizes?
No mais íntimo do
seu coração, muitos casais devem sentir sem dúvida a verdade de que um filho é
uma boa e grande dádiva. O problema é que vêm sendo condicionados para
não confiar nessa verdade. E é por isso que precisam de que alguém os ajude
a conquistar essa confiança. No meu modo de ver, somente os casais que
optaram pelo bem de ter filhos, em toda a plenitude com que Deus
desejava abençoar-lhes o casamento, estão habilitados a ensinar e transmitir
essa confiança. O Papa Paulo VI, na Humanae vitae, quis
destacar em primeiro lugar, entre os pais que compreendem e vivem a
paternidade responsável de acordo com a vontade de Deus, aqueles que tomam “a
deliberação ponderada e generosa de ter uma família numerosa” 10.
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(10) Humanae
vitae, n. 10.
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Muitos casais de
hoje vêm sofrendo de uma auto-privação, de um empobrecimento
voluntário, causado pelo fato de recusarem o dom da vida e a fecundidade do
amor. Não me surpreenderia se a história viesse a registrar a nossa
sociedade moderna, tão preocupada com o bem-estar, como “a sociedade empobrecida“,
na qual povos inteiros se foram depauperando até à morte porque o sentido
verdadeiramente humano dos valores foi pouco a pouco sugado das suas vidas.
A PERDA DA
SEXUALIDADE
Uma última palavra
sobre a idéia de auto-privação. Às vezes, privar-se de alguma coisa pode ser
necessário e sensato, por exemplo quando motivos de saúde exigem que alguém se
prive de alimentos sólidos. Esse jejum, no entanto, não deixa de ser uma
privação, e se não se quiser que termine na morte, deve ser temporário, para
que o paciente possa voltar a alimentar-se de maneira saudável e normal. O
apetite sexual da sociedade ocidental moderna não é normal nem saudável, nem
realmente sexual.
Os defensores da
contracepção rejeitam o ensinamento da Igreja segundo o qual os aspectos
unitivo e procriador no sexo conjugal são inseparáveis, e afirmam que é
perfeitamente legítimo separá-los, já que a anticoncepção anula o aspecto
procriador, mas respeita o unitivo. Ora bem, na realidade, não é
isso o que acontece quando se recorre a esses meios. O verdadeiro efeito das
práticas anticoncepcionais não é separar esses dois aspectos, mas anulá-los.
Que o sexo submetido a anticoncepcionais não é procriador, é evidente para
qualquer pessoa, mas o que não é tão claro é que não seja unitivo, pelo menos
em sentido conjugal. Ora bem, o que uma análise mais profunda dos fatos nos diz
é que nem mesmo é sexo, num sentido propriamente humano.
Na contracepção,
não se separa o sexo de algum elemento estranho a ele, ou de um elemento a ele
vinculado por um lamentável acidente no projeto biológico do sexo. O que se
separa é a ação do sexo – a ação aparente – do seu significado.
A realidade do sexo é inteiramente deixada de lado, e o que as pessoas realizam
é uma simples pantomima.
Ou seja, o que na verdade se separa é o “corpo” do
sexo da “alma” do sexo, e o que fica para trás é o cadáver do sexo. A anticoncepção oferece às
pessoas um sexo aparentemente corporal, ou seja, essencialmente privado de
alma. Ora, isso não passa de sexualidade mumificada, de sexo
morto. O nosso mundo moderno, com efeito, está empenhado em matar o sexo e
a sexualidade humanos.
Muitos casais
modernos perderam o verdadeiro apetite sexual. A sexualidade que os
caracteriza não é uma sexualidade humana. Uma masculinidade e uma
feminilidade aleijadas convergem num simulacro de união que não é
autenticamente conjugal. Esses casais correm o perigo de morrer de inanição
conjugal-sexual, na medida em que estão privados das qualidades humanizadoras e
personalizantes do verdadeiro sexo conjugal, desse verdadeiro bem
que é a sexualidade. Uma esterilidade voluntária nega ao seu amor o
fruto que o próprio amor – de acordo com a sua natureza – deveria produzir, e
do qual necessita para se alimentar e sobreviver.
Cormac Burke
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